Bem-vinda
O nome dela pode ser Luzia.
Nasceu agora mesmo, no Brasil. Um peso, mas também uma alegria.
Se tudo estiver bem com ela, com sua saúde e seu desenvolvimento, nos próximos anos a menina vai realizar um pequeno milagre. A partir de dados desorganizados, fragmentados e muitas vezes contraditórios, Luzia vai aprender a falar.
Quando, na vida adulta, ou mesmo ainda na escola, ela for tentar aprender um novo idioma, vai entender que não foi à toa que usei a palavra “milagre” agora há pouco. Aquilo que para uma pessoa adulta, instruída, com acesso a todo tipo de recursos e métodos é uma tarefa complicadíssima, uma criança pequena resolve por conta própria, quase sem dar por isso.
A linguagem é algo absolutamente central para a nossa espécie, e somos muitíssimo competentes em pegar esse bastão de uma geração anterior. Caso seja estritamente necessário, chegamos até a desenvolver um idioma que atenda às necessidades do nosso grupo em situações em que nos vemos privados de meios de comunicação, como já aconteceu com crianças surdas que, reunidas, desenvolveram como quedo zero uma língua de sinais todinha delas.
E Luzia não há de ser uma exceção.
As exigências para este milagre da aquisição da linguagem são até menores do que as relativas a outros campos: nossa menina pode nascer em condições de violenta pobreza e privação e, mesmo assim, seu desenvolvimento linguístico vai acontecer. Pode demorar um tanto mais, porém vai acontecer. E se tudo estiver razoavelmente bem, ela vai acabar ganhando o domínio completo do idioma dos seus pais, da sua comunidade, do seu país. Ou, na verdade, vai elaborar sua nova versão dessa língua.
Sim, mesmo que Luzia não tenha acesso à educação formal.
Nesse caso, é essa variedade do idioma que Luzia não vai ter no bolso. Mas apenas essa.
Como nasceu no Brasil, é quase certo que esse idioma venha a ser o português. Ele vai ter um papel central na existência de Luzia; será o instrumento que ela vai utilizar para aprender, tomar decisões, conquistar o amor de alguém, alertar um amigo, pedir carinho à mãe, dizer bobagens para um filho… Tudo vai se dar nesse idioma. Nessa coisa variada, colorida, esquisita e maravilhosa que chamamos de língua portuguesa.
Em alguns anos Luzia vai poder ler este livro, escrito no que será — quase certamente — sua língua materna.
E podemos ter esse grau de convicção porque, em termos de uma hipotética normalidade mundial, o Brasil está bem fora da curva-padrão. Poucas nações de tamanho mais considerável são tão fundamentalmente monolíngues como a nossa. Na África, na Oceania, na Ásia a gente encontra países onde centenas de línguas diferentes não apenas existem, mas coexistem de verdade, em uso constante entre seus cidadãos. Na Nigéria, por exemplo, que tem uma população um tantinho maior que a nossa, falam-se mais de quinhentos idiomas. Papua Nova Guiné, com menos habitantes que a cidade de São Paulo, usa mais de oitocentos.
E não se trata de “dialetos”, termo complicado que muitas vezes é empregado apenas com um sentido preconceituoso, para desclassificar certos idiomas que a princípio seriam menos importantes que outros — via de regra por serem falados por gente menos branca e menos rica, ou por comunidades desprovidas de Forças Armadas, como costumam brincar os linguistas. Estamos falando de línguas: complexas, ricas, diferentes entre si e fascinantes.
É bem verdade que um número considerável de brasileiros utiliza outros idiomas como sua língua primeira. Há os usuários da Libras, a língua brasileira de sinais, que é um idioma pleno e totalmente diferente do português; há os falantes das línguas originárias do Brasil que não foram extintas durante esses séculos de colonização (no censo de 2010, pouco menos de 140 mil dessas pessoas disseram não usar o português em família); há falantes das diversas línguas de colonização que aportaram aqui especialmente no final do século XIX e no começo do XX (o talian dos migrantes italianos, o hunsrückisch ou o pommeranisch dos alemães, entre várias outras, como o árabe, o japonês, o polonês); e há também falantes de línguas que chegaram com migrações mais recentes, como a dos sírios, haitianos e venezuelanos. Parte dessa diversidade, inclusive, é hoje reconhecida por atos legais que nos últimos anos concederam a certos idiomas originários (o baníwa e o tukano, por exemplo) e a algumas línguas de herança (como o pommeranisch) o estatuto de línguas oficiais de seus municípios.
Portanto, o fato de Luzia ter nascido no Brasil e ser uma legítima brasileira não faz dela alguém que, necessariamente, vá ter o português como língua materna, como língua do coração. Mas também é verdade que essa tendência é muito forte em nosso país.
Pense apenas que, quando adulta, Luzia vai poder entrar num automóvel em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e cerca de uma semana depois descer em Uiramutã, em Roraima, tendo sido perfeitamente compreendida, ao longo dos quase seis mil quilômetros que percorreu, na mesma língua falada em seu ponto de partida. Sotaques à parte, é claro.
Uma viagem dessas proporções pelo continente africano, por exemplo, faria Luzia atravessar centenas de zonas linguísticas diferentes e encontrar idiomas que nem sequer são parentes próximos uns dos outros. Lá, ela poderia sair de uma área onde se fala árabe, passar por outras com grupos de usuários de iorubá (uma língua tonal, como o vietnamita) e chegar a pontos onde, no lugar de algumas das nossas consoantes, as línguas têm todo um repertório de cliques, aqueles sons que parecem beijinhos ou estalidos com a ponta da língua.
O Brasil, no entanto, numa dimensão espantosa e até assustadora, é recoberto de modo um tanto uniforme pela língua portuguesa. Mais ainda: é povoado, na mesma espantosa e assustadora dimensão, por pessoas que falam exclusivamente essa língua portuguesa.
É claro que nas classes mais altas e com mais acesso à educação formal há muitas pessoas fluentes em outras línguas, como o inglês. À medida que a internet, os filmes, a música, as séries e os games vão apresentando o idioma a uma parcela cada vez maior da população mais jovem do país, esse acesso ao inglês como língua global se infiltra em camadas diversas da população.
Ainda que esse domínio não seja pleno, e sobretudo não seja algo do dia a dia dessas pessoas, configurando muito mais uma ferramenta de uso específico em determinadas situações, é preciso lembrar que ele existe. Assim como não se pode esquecer daquelas comunidades migrantes, especialmente indígenas, que, mesmo quando usam o português, o fazem ao lado de seu idioma próprio.
De certa forma, portanto, é possível dizer que, nessa longa viagem do sul ao norte do Brasil empreendida por uma Luzia adulta, ela também passaria por diversos grupos de idiomas. O que não altera fundamentalmente quanto é acachapante o domínio do monolinguismo português na nossa sociedade. Olhar para o mapa da América do Sul é ver uma ilha de falantes de português cercada por diversos grupos de falantes de espanhol (e de outras línguas). Na relação com nossos vizinhos mais imediatos, somos facilmente caracterizados como aqueles que falam português. E não é só desse ponto de vista externo: para nós mesmos essa identificação é importante. A língua portuguesa é parte central da nossa definição.
De maneiras muito complexas, o português faz parte da identidade de angolanos e moçambicanos na África, de timorenses na Ásia e de habitantes de outros antigos territórios coloniais de Portugal; no entanto, esses povos tendem a viver num mundo mais marcado pela presença de vários idiomas em seu cotidiano.
Já uma contraparte de Luzia que nascesse em Portugal, lá no Velho Mundo, do outro lado do Atlântico, num país noventa vezes menor que o nosso e com um vigésimo da nossa população, dividiria com ela a mesma certeza: a de que aprenderia o português já no colo dos pais e viveria num país dominado por essa língua, provavelmente precisando apenas dela para viver ali.
Porém. Ah, porém…
Não é preciso recorrer a anedotas, listas de palavras diferentes ou piadas sobre a pronúncia de alguns sons para ficar claro que aquilo que em Lisboa se chama de português tem lá suas diferenças em relação ao que chamamos de português aqui em Curitiba, onde eu estou escrevendo.
Muitos dirão que isso se deve ao fato de nós, aqui, falarmos uma versão conservadora do idioma que em Portugal passou por mudanças mais aceleradas desde os tempos do Descobrimento. Isso tem lá seu grão de verdade, mas no fundo a situação, como sempre, é mais complicada. E ela é muito mais complicada do que a narrativa um tanto pacificada que eu ainda ouvi na escola nos meus tempos de criança e que continua fazendo parte do imaginário popular a respeito da formação da nossa língua: a ideia de que o português foi trazido para o Brasil com as caravelas em 1500 recebeu aqui a mera influência de línguas indígenas (e aí vão te mostrar uma lista de palavras com nomes de bichos e plantas), depois sofreu alguma influência de línguas africanas (e tome lista de termos de culinária e candomblé), até que, depois de sentir o sopro dessas novidades, nosso idioma acabou ficando um tantinho diferente do que era. Um português bem temperado.
Parece simples, indolor, algo feito e resolvido. Só que essa conversa precisa ser abordada mais criticamente. Primeiro, os portugueses não trouxeram a língua para cá em 1500. Eles mal vieram para cá em 1500! A colonização de verdade começou décadas depois (a partir de 1532), e em certa medida só engrenaria de maneira convincente depois de 1600. Segundo, não houve nada parecido com essa ideia de que o idioma deles se instalou aqui como um daqueles marcos de pedra que os portugueses cravaram no nosso litoral para confirmar sua posse e que foram sendo calmamente transformados pelos ventos e pela umidade dos trópicos. A história da implementação da língua portuguesa no nosso território é um drama. Nada tem da narrativa pacificada, meio oficial e meio preguiçosa, que nós mesmos costumamos adotar.
O português correu, muitas vezes e durante muito tempo, o risco de desaparecer, suplantado por línguas nossas, que ao menos até o século XIX eram, em muitas situações, as mais usadas nas cidades do Norte e na vasta região dominada por São Paulo, tanto entre brancos quanto entre não brancos.
O Brasil unificado que fala português só começa a se delinear um ano depois da declaração da Independência, em 1823, quando o Estado do Grão-Pará e Maranhão, área que, grosso modo, compreendia a nossa atual região Norte e onde ainda se falava muito nheengatu, decide se unir aos independentistas do Sul. A Amazônia só passaria a ser terra fundamentalmente lusófona lá pelos anos 1920. Antes, a região iria sofrer dois processos de encolhimento da população falante de nheengatu — a repressão à revolta da Cabanagem e o alistamento forçado para a Guerra do Paraguai — e depois a migração coordenada de retirantes do Nordeste, esses sim falantes de português, num esforço de repovoamento que também serviu para fornecer mão de obra para o ciclo da borracha na região amazônica.
Ainda assim, mesmo com essa “vitória” do português unificado em terras de Pindorama, não cabe pensar na estabilidade inalterável daquele marco de pedra mal tocado pelo musgo, pelo sol e pela brisa. O português que herdamos, e que durante o século vai começar a dar corpo à literatura, à imprensa, aos debates (e a boa parte da cultura em nosso país), não pode ser classificado assim tão tranquilamente como um fio ininterrupto vindo desde 1500 até hoje. Para estudiosos da área, fica cada vez mais claro que as características da língua portuguesa falada no Brasil, e que a tornam diferente da que vigora entre os portugueses, por exemplo, assim como a uniformidade do português falado em nosso país (ao viajar de norte a sul de Portugal pode-se encontrar mais variação do que numa distância cinco vezes maior no Brasil), decorrem de um processo histórico de deglutição em que o idioma europeu foi sendo aprendido de maneira improvisada, aproximada (e também miraculosa). O idioma europeu aprendido pelos indígenas e, sobretudo, pelos africanos escravizados, trazidos para cá como mercadoria e provindos de diversas nações e falantes de diversos idiomas, acabaria, assim, transformado em manifestações novas, em versões alteradas do que foi um dia.
Mais do que um monumento pétreo coberto por uma leve pátina do tempo, o que as pesquisas sugerem é que o português falado no Brasil é um mosaico reconstruído a partir dos cacos daquele marco de pedra; e que, para começo de conversa, tratava-se de uma língua humana como todas as outras e, por isso mesmo, era mais uma colcha de retalhos do que um momumento. E isso altera tudo, transformando de mil maneiras o presente que uma criança vai receber ao aprender a falar português.
Ao nascer hoje no Brasil, Luzia é herdeira de um patrimônio. Sim, um patrimônio que inclui a literatura e a cultura portuguesas, e que a torna irmã de Machado de Assis e Cecília Meireles, de Alexandra Lucas Coelho e Fernando Pessoa, e também de Paulina Chiziane e José Eduardo Agualusa. Mas ela herda também um patrimônio de que fazem parte gerações e gerações de indígenas exterminados, milhões e milhões de africanos arrastados para cá, vendidos e massacrados por um sistema que visava privá-los de partes importantes de sua identidade; esse patrimônio é resultado do que essas pessoas tiveram que fazer para aprender a tal língua de Camões e, no processo, deixá-la coberta com suas marcas e cicatrizes.
A língua portuguesa que Luzia vai herdar é resultado de uma trajetória improvável e única. Resulta do processamento de uma herança europeia por milhões de pretos, pardos, amarelos, indígenas, pobres, desprovidos e desconsiderados, que desde sempre constituíram a imensa maioria da população das fazendas, vilas e cidades; da presença central de mães que transmitiram sua versão dessa língua a seus filhos (frequentemente gerados por homens brancos europeus em atos sexuais com variados graus de consentimento ou violência), tirando das mãos dos homens europeus a linha de transmissão desse patrimônio linguístico e formando gerações de mestiços, de caboclos, pequenos “bárbaros” que podiam se apossar daquela língua sem grandes considerações por Lisboa.
Luzia é mais uma pessoa que vem; ela continua uma história de vidas, de milagres.
Daqui a alguns anos será usuária desta mesma língua em que estamos conversando aqui, esta língua que passou por poucas e boas para chegar aonde está e para ser como é. Tão nossa e tão antiga; tão nova e de origens tão distantes.
Por enquanto, vamos deixar a menina no berço, você e eu. É hora de tentar entender que língua é essa.
Useful Expressions
- "Ah, porém..." - "Ah, but..."
- "Tem lá suas diferenças" - "Has its differences"
- "Passou por mudanças mais aceleradas" - "Underwent faster changes"
- "Isso tem lá seu grão de verdade" - "That has some truth to it"
- "Narrativa um tanto pacificada" - "Somewhat pacified narrative"
- "Lista de palavras com nomes de bichos e plantas" - "List of words with names of animals and plants"
- "Línguas africanas" - "African languages"
- "Aí vão te mostrar" - "There they will show you"
- "Português bem temperado" - "Well-seasoned Portuguese"
- "Implementação da língua portuguesa" - "Implementation of the Portuguese language"
- "Nada tem da narrativa pacificada" - "Nothing has the pacified narrative"
- "População falante de nheengatu" - "Population speaking Nheengatu"
- "Vai começar a dar corpo" - "Will begin to take shape"
- "Decorrem de um processo histórico" - "Derive from a historical process"
- "Colcha de retalhos" - "Patchwork quilt"
- "Herdeira de um patrimônio" - "Heir to a heritage"
- "Gerações e gerações" - "Generations and generations"
- "Presença central de mães" - "Central presence of mothers"
- "Pequenos 'bárbaros'" - "Little 'barbarians'"
- "Linha de transmissão desse patrimônio linguístico" - "Line of transmission of this linguistic heritage"